21 de maio de 2007

Jamais José Saramago poderia ser torcedor do meu Paysandu

(14 de novembro de 2005 - Publicado na Lista Democracia)

Caros amigos,

1-Ao contrário do genial José Saramago, sou otimista com “as alamedas e as avenidas” da democracia no planeta. Entendo que mesmo com todos os percalços que nós vivemos no mundo da política mundial, vejo que muitos países até já encontraram prumos mais consolidados na construção democrática. O Brasil é um exemplo. O Relatório Internacional da ONU, de 2004, sintetiza, muito bem, os admiráveis avanços dentro do marco da construção do Estado Democrático de Direito no mundo todo.

2-Nunca esqueço de uma frase do meu amigo, sociólogo e camarada José Maria Platilha: “Ser subversivo é apostar na democracia como valor universal”. Platilha dizia que não há nada entre a condição humana mais meritória que a busca da construção democrática porque ela subverte a ordem dos golpistas e reacionários e por acabamento, Platilha ficava mais bem-aventurado em saber que a construção do Estado Democrático de Direito era um patrimônio da humanidade.

3-Quando Platilha articulava essas suas teses, eu arquitetava uma conjuntura política: é que na democracia algumas palavras tornam-se, pelo uso constante e recorrente, terminologias insubstituíveis para exprimir tudo e nada ao mesmo tempo. Essa dualidade entre o tudo e o nada, pode criar, paradoxalmente, um pessimismo e/ou otimismo.

4- Então, qual seria a palavra? Ou as palavras? Por que pergunto isso?

5-Por que ainda, em outra situação: o mundo está cuspindo fogo, com disse Saramago, e nós, seus ocupantes e em parte predadores, estamos perdendo a resistência democrática? Com isso, seria o anúncio político irreprochável do veredicto pessimista de Saramago?

6-A priori julgo que não.

7-Ao mesmo tempo, eu tenho que aceitar, mesmo com avanços democráticos mundiais, que “as sensibilidades machucadas” podem afetar nossas relações de forma muito mais grave em futuro muito curto. Aí surge outra indagação, no pessimismo clássico do José Saramago: de certa forma, o capitalismo já está esculpindo um ser humano menos humano?

8-Eu respondo ao Saramago com o Marx e o Engels. No Manifesto do Partido Comunista, os dois admitiram, em 1848!, que o capitalismo revolucionou a humanidade e avançou em 100 anos aquilo que em mais de 1000 anos a humanidade não tinha conseguido em todas as áreas societárias. Isso que dizer que Marx era otimista com o capitalismo? Não necessariamente. Mas ao mesmo tempo desejava sua ultrapassagem e não destruição (como queria e querem certos leninistas), porque via formas extraordinárias de edificação societária para condição humana dentro do próprio capitalismo.

9-Neste sentido, eu julgo que o “merecimento do mérito” não é por culpa exclusiva do capitalismo, porque temos questões societárias que perpassam o próprio capitalismo e que alcançam outras questões até mais societárias.

10-Mas por que Saramago é tão pessimista assim? Se formos observar, há também na ilharga dos avanços democráticos, enormes retrocessos no contexto do mundo da política mundial. Saramago indaga, nesses enormes retrocessos, três problemáticas cruciais para sobrevivência democrática: sobre as guerras; o papel hegemônico na geopolítica mundial dos EUA; a fome e a pobreza que ainda assolam o nosso planeta.

11-São indagações pertinentes que confesso que fico um tanto, em muitos momentos, aturdido. Isso não quer dizer, ao contrário de Saramago, que eu não seja um sujeito otimista. Sim, mil vezes sim: sou otimista.

12-Mas tenho que ficar alerta, como quer Saramago, porque eu vejo também um tipo de condição humana com mais freqüência célere que ataca e agride em obediência ao instinto de sobrevivência, justamente para se defender desse quase invencível cipoal de violência. O que já no século 18, escrevia o pensador Hobbes: "Homo homini lupus" (o homem é o lobo do homem).

13-É! Então, o que não escreveriam hoje os pensadores do Iluminismo? Pois é!

14-Entretanto, não quero cair no determinismo histórico do axioma o homem é o lobo do homem, até porque diante de Saramago e Hobbes, surgem outras indagações: parece não existir lugar ou tempo para o homem sereno, aquele que é o contrário do homem arrogante? O homem sereno é uma raridade? Daqui a pouco uma impossibilidade?

15-Norberto Bobbio, o grande pensador político italiano do século 20 (ao lado de Antônio Gramsci), escreveu um esplêndido livro - "Elogio da Serenidade" -, justamente para mostrar que ela, a serenidade, é a "mais política das virtudes". E para mostrar, de resto, que a sociedade moderna precisa de "cidadãos virtuosamente democráticos". De homens comprometidos "com o combate a toda forma de preconceito e com a prática cotidiana da tolerância".

16-Se nós precisamos de cidadãos virtuosamente democráticos, precisamos aumentar, assim sendo, nossa capacidade de intervenção na democracia?

17-Sim. Como comunista, acredito que é na aptidão democrática que nós podemos cultivar nossas vistas utópicas de um mundo melhor e ajudar a criar otimismos.

18-E ao cultivar nossas vistas utópicas é voltar em Raimundo Faoro na controvérsia brasileira. Ele dizia que depois da Constituição de 1988, uma palavra chave que pudesse avançar a democracia seria compreender e empreender a “cidadania em futuros mais otimistas”.

19-Faoro opinava que vivemos repetindo: Direitos de cidadãos! Praticar cidadania! Formar cidadãos! Mas muitas vezes não sabemos, ou melhor, não queremos nos apropriar desses termos para repensarmos nossa vida cotidiana, nossos atos e os dos outros.

20-Assim cidadãos virtuosamente democráticos numa cultura como a nossa permeada com o jeitinho brasileiro da linhagem antropológica da Lei de Gérson não é simplificado em fazer rupturas. Eu lembro que quando o Caetano Veloso, em 1972, no Teatro Castro Alves disse que infringir um sinal vermelho era um ato desrespeitoso contra a condição humana, foi vaiado pela platéia. Caetano, mesmo vaiado, perguntava, além disso: tem ato mais humano que respeitar o outro?

21-Nunca esqueci dessa cena e lembrei que julgar atos alheios de maneira arbitrária, discriminar o outro pela falta de "grife" ou pela pronúncia errada, exilar-se no momento da decisão coletiva, eximir-se frente ao racismo ou diminuir a gravidade do ato ilícito praticado porque afinal todo o mundo faz e entre outras ocorrências alheias com a órbita da cidadania, são situações que muitas vezes não são bem entendidas e gera um pessimismo em muitos que combatem esses tipos de anti-cidadania, como é o caso da postura do comunista Saramago.

22-Enfim, podemos apontar inúmeros gestos cotidianos que no conjunto se constituem num mosaico de ações que parecem ser isoladas, mas que sinalizam o quanto a cidadania precisa ser revisitada na prática e nas teorias que a sustentam. Acontece que mesmo com tais adversidades, no Brasil, podemos dizer que temos avançado substancialmente.

23-Esse meu otimismo decorre porque penso que a cidadania é um conceito construído historicamente. Desde os gregos, o termo tem adquirido significado diversificado de acordo com as experiências sociais. Na modernidade, o trabalho clássico de T. H. Marshall ("Cidadania, Classe Social e Status"), elucida o desenvolvimento dos direitos que compõem a cidadania na democracia ocidental: os civis, políticos e sociais. A ligação desses três direitos, em que a busca de um leva à conquista do outro, fundamenta a estabilidade do regime democrático. Na Inglaterra, esses direitos surgiram seqüencialmente durante os séculos 18, 19 e 20.

24-Sinteticamente, eu poderia dizer que em primeiro lugar vieram os direitos civis, que englobam os relacionados à liberdade individual e ao direito à propriedade, inclusive sobre si mesmo, além dos direitos de ir e vir e o de livre expressão. Cito outra vez o Relatório Internacional da ONU, do ano passado, que fez um levantamento e mostrou que esses avanços foram maiores que os retrocessos no que tange aos direitos civis.

25-De posse dos direitos civis, foram reivindicados os direitos políticos, ou seja, os que englobam a prática de representar e ser representado politicamente e o de votar e ser votado. Finalmente, conquistados os direitos políticos, avançou-se para a conquista dos sociais, os quais ligam-se aos meios vitais do humano, como o direito à habitação, saúde e educação, sobre os quais o Estado e a sociedade civil devem agir.

26-Só que no Brasil há muitos entraves que podem até diminuir o otimismo sobre a dinâmica e execução desses direitos. Se olharmos pelo prisma somente do pessimismo, nós podemos dizer que esses direitos não se constituíram nesta ordem e nas mesmas bases que na sociedade inglesa. Lembremos nosso passado escravista, como bem advertia Sérgio Buarque de Hollanda. Pior, aqui parecia que os direitos eram entendidos como concessões diante das condições extremamente desiguais - não apenas do ponto de vista econômico, mas e principalmente educacional (instrumento básico da cidadania) -, sob as quais os brasileiros viveram esses 116 anos de República.

27- Outro entrave. Igualmente Raimundo Faoro colocava que nossa cultura cívica carece da percepção sobre a fronteira entre o público e o privado. Essa afirmação, dita tantas vezes sob outras palavras por nossos cientistas sociais, é de uma atualidade ainda aterradora, pois como sempre o público é encarado ou como simples extensão do privado (nos momentos de usufruto) ou, então, como o espaço de "ninguém" (nos momentos de cuidar e manter).

28-E mais um entrave: pelo fato de não ser vista como o social compartilhado, a noção de direitos é dissociada da de deveres. É por isso que nessa geléia geral a cidadania emerge como recurso lingüístico figurativo de tudo e de nada.

29-Na condição de professor, penso que no processo pedagógico está o desafio: como a educação poderá garantir que nos consideremos todos iguais e não alguns "mais iguais" que o resto? Qual cidadania queremos e podemos construir neste século 21? Como reinventar as nossas relações no espaço público?

30-Isso implica encarar a formação do ser humano como o desenvolvimento de suas potencialidades de conhecimento, julgamento e escolha, mas principalmente como possibilidade de conservar ou ultrapassar valores, crenças, mentalidades, costumes e práticas.

31-Aí eu sou mais otimista porque se observamos o que o mundo tem feito dentro do marco democrático, eu posso compreender que temos avançado, não necessariamente em passos largos, mas temos avançado e isso me faz se um sujeito mais otimista.

27-Tão otimista que podemos caminhar e alcançar um novo Renascimento. Por que não? Um Renascimento que recupere o homem sereno. O cidadão ético, o homem generoso, tolerante, que tenha na virtude e na compaixão valores reais de bem viver. E conviver.

28-O que me faz contradizer Saramago com seu pessimismo. Isto também me faz dizer que jamais Saramago poderia ser torcedor do meu Paysandu, que é sempre um sujeito por excelência inata: otimista.

Aquele abraço,
Lauande.

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